Manejo do fogo de brigadas indígenas reduz incêndios em 80%

em 14 de abril de 2022

Brigadista indígena atuando no manejo do fogo. Foto: Brigada Kadiwéu I


Uma nova pesquisa realizada pela equipe do Projeto Noleedi constatou que o manejo de incêndios feito pelas brigadas da Terra Indígena Kadiwéu, localizada no município de Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul, reduziu a frequência de incêndios florestais em 80% nas áreas com alta frequência de fogo e diminuiu em 53% o tamanho da área anual queimada. O estudo também observou que cada foco de incêndio iniciado dentro do território de atuação das brigadas atingiu uma área menor, quando fez a comparação com os incêndios do período sem a atuação das brigadas indígenas. Além disso, a ação das brigadas foi capaz de reduzir o intervalo de tempo  entre incêndios ocorridos em uma mesma área, ou seja, áreas que antes da formação de brigadas indígenas queimavam todos os anos, hoje, com o trabalho das brigadas, passaram a apresentar queimadas em intervalos maiores de tempo, como por exemplo, a cada dois ou três anos. Esses resultados  demonstram que o manejo do fogo realizado pelas brigadas indígenas reduz eficientemente a frequência e a extensão das áreas afetadas por incêndios e, assim, reduz seus impactos. Outra descoberta importante do estudo é que no período de atuação das brigadas indígenas as chances de ocorrência de incêndios foi menor mesmo em anos com condições climáticas favoráveis, como os muito secos.


O reconhecimento da importância da pesquisa aconteceu em 27 de fevereiro deste ano, quando foi publicada em forma de artigo assinado por 14 pesquisadores e parceiros do Projeto Noleedi pelo Journal of Applied Ecology (Revista de Ecologia Aplicada), da British Ecological Society (Sociedade Ecológica Britânica), uma das mais renomadas publicações científicas do mundo. O Journal of Applied Ecology é uma revista científica mensal que publica pesquisas em todas as áreas da gestão ambiental. Foi criado em 1964 e os editores sênior são Jos Barlow (editor executivo), Nathalie Pettorelli, Philip Stephens, Martin Nuñez e Romina Rader. O artigo está disponível na Internet através do link: https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1365-2664.14139

Maxwell da Rosa Oliveira (de cinza à esquerda), em demonstração de banner durante o evento Wildfire 2019, em Campo Grande. Foto: Projeto Noleedi


Maxwell da Rosa Oliveira, mestrando de Biologia Vegetal pela UFMS e responsável técnico na área de geoprocessamento e sensoriamento remoto do Projeto Noleedi é um dos autores do artigo e explica como foi realizada a pesquisa: “esse trabalho teve início no desenho experimental do Projeto Noleedi. Para fazer ele nós tivemos de mapear 18 anos da área queimada em toda Terra Indígena. A partir daí, nós separamos um período anterior a 2009, onde não tinha atuação das brigadas indígenas, e um período posterior a 2009, que é onde já temos a atuação dessas brigadas. A partir desta separação nós conseguimos comparar esses padrões de incêndios para esses dois períodos e também relacionar a diferença entre esses padrões com outras variáveis como, por exemplo, a climática.”

Detalhe de banner mostra 18 anos de monitoramento do fogo na TI Kadiwéu


O resultado da pesquisa da série de 18 anos de queimadas na Terra Indígena Kadiwéu mostra que as brigadas indígenas da comunidade reduziram a área queimada e a escala dos incêndios florestais. “Isso indica que antes das brigadas os incêndios atingiam uma área muito maior e quando passa a ter as brigadas dentro do Território Indígena esses incêndios ocorrem em uma área bem menor”, ressalta Oliveira. O manejo do fogo realizado pelas brigadas também reduz os incêndios florestais em vegetação sensível ao fogo, como é o caso dos ambientes florestais. Ao serem atingidos pelo fogo, esses ambientes apresentam maior mortalidade de indivíduos do que as savanas, por exemplo, que são mais adaptáveis ao fogo. A redução na frequência do fogo nestes ambientes sensíveis contribui no seu processo de recuperação.


O manejo do fogo realizado das brigadas indígenas ainda altera a relação entre clima e incêndios florestais. O Projeto Noleedi observou que existe uma diferença na relação entre o clima e os incêndios ambientais, no período com e no período sem as brigadas indígenas. No período sem as brigadas o clima foi um fator determinante na área queimada dentro da Terra Indígena Kadiwéu. Anos com pouca chuva ou com intervalo muito grande entre as chuvas apresentaram as maiores áreas queimadas. Enquanto isso, a partir de 2009, quando foram formadas e começaram a atuar as brigadas indígenas, o clima deixou de explicar a área queimada, ou seja, mesmo em anos de alto risco de incêndios, em anos secos e com poucas chuvas, as áreas queimadas foram pequenas.


Embora seja aplicada no Cerrado e Pantanal de Mato Grosso do Sul, a metodologia da pesquisa pode ser replicada para outras Terras Indígenas ou biomas com brigadas de incêndios. Ela demonstra como o manejo realizado pelas brigadas indígenas pode ser uma importante ferramenta para contribuir com programas e políticas públicas que integrem os conhecimentos tradicionais indígenas para construção de estratégias cada vez mais eficazes como o Manejo Integrado do Fogo (MIF), aplicado pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Coordenador do Projeto Noleedi, Danilo Bandini Ribeiro, com o brigadista Rubens Aquino Ferraz durante palestra no evento Wildfire 2019. Foto: Projeto Noleedi


O professor doutor do Instituto de Biociências da UFMS e coordenador do Projeto Noleedi, Danilo Bandini Ribeiro, trabalha com Ecologia do Fogo e as questões relacionadas à biodiversidade e os distúrbios causados pelas populações humanas. Ele conta que a ideia para a produção do artigo surgiu incentivada pela atuação do Prevfogo/Ibama, por meio das brigadas indígenas Kadiwéu. “Tínhamos esses dados, olhando para eles a gente tinha a sensação de que o manejo tinha obtido bastante sucesso. Mas faltava uma análise formal para a gente comprovar como o Manejo Integrado do Fogo (MIF) feito pelos brigadistas indígenas é efetivo, ele altera o padrão dos incêndios. Fizemos esse artigo para comprovar, para fazer uma análise quantitativa de quais são os efeitos, de quanto diminuía na área queimada, quanto que melhorava os incêndios, quanto que diminuía o fogo nas áreas mais sensíveis.”


Ribeiro também ressalta a importância de ter um artigo publicado no Journal of Applied Ecology, da British Ecological Society, que está entre as cinco maiores revistas de conservação da biodiversidade do mundo: “é muito importante para o projeto e para o manejo do fogo no Brasil porque até o presente momento é o conjunto de dados mais robusto, com as evidências mais fortes que a gente tem sobre o sucesso do Manejo Integrado do Fogo (MIF) para prevenir incêndios em Terras Indígenas. É extremamente importante ter esse embasamento científico para a gente poder pensar na expansão de políticas públicas, no manejo do fogo no Pantanal e em outros biomas onde isso possa ser aplicado. É, também, muito importante para os brigadistas indígenas verem como os trabalhos deles estão tendo ótimos resultados.”


As tradições ancestrais e as novas técnicas de manejo do fogo


O fogo está presente em diferentes biomas há milhões de anos, se tornando em alguns desses ambientes um importante fator ecológico capaz de moldar os padrões de distribuição da vegetação. Contudo, nos últimos anos tem-se observado com maior frequência incêndios de grandes proporções que podem causar grandes impactos na sociedade e na biodiversidade. Um exemplo é o Pantanal, onde estudos estimaram a morte de 17 milhões de vertebrados nos incêndios ocorridos no ano de 2020. Essas mudanças nos padrões de incêndios evidenciam a necessidade de estratégias de manejo cada vez mais eficazes. Por outro lado, a presença de muitas etnias indígenas, também por milhares de anos, nesses ambientes propensos a incêndios permitiu que esses povos acumulassem um vasto conhecimento sobre o manejo do fogo. Hoje, se tem registrado o uso do fogo por esses povos para diversas atividades como estratégia de guerra, gerenciamento de recursos naturais na caça, agricultura e pecuária, práticas culturais e na prevenção de incêndios destrutivos.

Manejo Integrado do Fogo na TI Kadiwéu em 2021. Foto: Brigada Kadiwéu I


No Projeto Noleedi, a troca de experiências entre os pesquisadores e os brigadistas Kadiwéu tem sido fundamental, primeiro pelo conhecimento que eles têm da região, da fauna e flora, inclusive para indicar alvos porque uma das questões importantes do projeto é saber como o fogo afeta a produção de flores e frutos das espécies que são importantes para a comunidade. Junto com a comunidade foram eleitos alguns alvos e nessa troca de experiências foram escolhidas quais plantas seriam abordadas, de espécies que são importantes para a comunidade como, por exemplo, a guavira, que bastante gente consome. Assim, o Projeto Noleedi está estudando como a floração e frutificação deste fruto se comporta diante do fogo. Outras espécies que são mais raras, como o pau-santo, da qual as mulheres Kadiwéu extraem uma resina para pintar as tradicionais cerâmicas, também estão sendo pesquisadas.


Apesar da evidência da relevância do conhecimento tradicional indígena no manejo do fogo, ele só foi incorporado recentemente nas políticas de manejo. A integração das políticas de manejo do fogo e do conhecimento tradicional indígena no Brasil começou com o Manejo Integrado do Fogo (MIF). O MIF visa reduzir a probabilidade de grandes incêndios florestais e sua frequência em áreas sensíveis ao fogo. Uma das estratégias do MIF é formar brigadas de incêndio em territórios estratégicos, como Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Quando em territórios indígenas, as brigadas são compostas exclusivamente por moradores indígenas, sendo essa uma forma de integrar seus conhecimentos tradicionais nas atividades de gestão.

Alexandre de Matos Martins Pereira entre brigadistas e professores da UFMS, na TI Kadiwéu. Foto: Projeto Noleedi


Quem nos explica melhor sobre o MIF é o ecólogo com mestrado em aquicultura e analista ambiental do Prevfogo/Ibama, Alexandre de Matos Martins Pereira. No Projeto Noleedi, Pereira  faz a interface entre as brigadas indígenas e os pesquisadores da UFMS, ajudando na logística e nos diálogos com a comunidade. “O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é uma forma de você encarar o fogo, os incêndios florestais dentro das áreas naturais, de uma forma mais ampla onde são levadas em consideração não somente a questão do uso do fogo através de queimas controladas, para um fim econômico, mas também para as necessidades sociais e culturais de uma determinada população”, esclarece o analista ambiental. Quando se trata de populações indígenas, toda a mística e a cultura de uso do fogo também são levadas em consideração, seja para caçar, para limpar uma área para plantio ou para realizar um ritual ancestral. Além dos aspectos sociais e culturais o MIF acrescenta a questão ambiental, ecológica, da presença do fogo nesses ambientes. “Quando a gente fala em Manejo Integrado do Fogo a gente tenta relacionar todos esses aspectos para que a gente possa ter estratégias mais condizentes e que atendam as necessidades sociais, culturais e econômicas de uma determinada população sem esquecer a conservação da biodiversidade. A gente mescla esse conjunto de informações para traçar estratégias que atendam todas as necessidades”, afirma Pereira ressaltando que o MIF vem para facilitar o diálogo e trazer a compreensão dessas variáveis todas para permitir traçar estratégias de uso do fogo através das queimas controladas, das queimadas prescritas, com objetivo final da redução dos incêndios florestais, da severidade desses incêndios e, dessa forma, conseguir ter uma conservação da biodiversidade plena dentro desses territórios.

Foto: Projeto Noleedi


Na Terra Indígena Kadiwéu nem sempre o MIF foi aplicado pelas brigadas indígenas, criadas em 2009. Desde o início de suas atuações muita coisa mudou. De 2009 a 2014 o Prevfogo/Ibama atuava no combate aos incêndios florestais para que eles não se alastrassem. A única forma de prevenção que havia era o trabalho de Educação Ambiental, orientando as pessoas que moram na Terra Indígena Kadiwéu a não usarem o fogo ou, quando usar, solicitar o apoio das brigadas para fazer as queimas controladas. “A partir de 2014, com o conceito de Manejo Integrado do Fogo, inserindo a queima prescrita dentro desse trabalho, a gente começou a atuar usando o fogo como ferramenta de manejo. Dessa forma, a gente tem conseguido manejar a carga de combustível que se acumula ao longo do tempo e, assim, reduzir a incidência de incêndios florestais e seus impactos”, revela Alexandre Pereira. Desde 2021, além dos 30 brigadistas contratados em duas brigadas, o Prevfogo/Ibama contratou mais três indígenas mais experientes no trabalho de manejo do fogo para as queimas prescritas, são os Agentes de Manejo Integrado do Fogo. Neste processo, além dos aspectos sociais, culturais e econômicos da comunidade Kadiwéu, são levados em consideração a necessidade de usar o fogo, os aspectos ambientais do Pantanal e do Cerrado e o fato desses ambientes terem a presença do fogo como um processo ambiental natural.


Por que brigadas na Terra Kadiwéu?


A Terra Indígena (TI) Kadiwéu é um território de 540 mil hectares que tem a presença de dois biomas importantes no Estado de Mato Grosso do Sul, formando uma transição entre o Cerrado e o Pantanal. Como a TI é uma área da união, o Prevfogo/Ibama, como órgão federal, tem o dever de fazer os trabalhos de prevenção e combate aos incêndios florestais. Historicamente, o território Kadiwéu, até pelo fato de ser extremamente grande, tem a ocorrência de incêndios florestais. Nessa estratégia de diminuir os impactos e incidência dos incêndios florestais dentro dessa área federal, o Ibama vem atuando com capacitações, treinamentos e contratando indígenas do próprio território para atuar como brigadistas.


Cada uma das duas brigadas Kadiwéu é composta por 15 indígenas da comunidade. Uma fica localizada na Aldeia São João e a outra na Aldeia Alves de Barros. Elas são contratadas por um período específico do ano, o segundo semestre, que é o período mais crítico para a ocorrência de incêndios florestais. E atuam nesses seis meses, de junho a novembro ou de julho a dezembro, dependendo de quando se inicia o período crítico. Dessa forma, esses brigadistas, dentro desses seis meses, trabalham para prevenir e combater os incêndios florestais.


Políticas de manejo do fogo


Em se tratando de políticas públicas de manejo do fogo o cenário é bastante animador. Existe o Projeto de Lei Nº 11.276/2018 que estava parado na Câmara dos Deputados. Mas os grandes incêndios que ocorreram em 2019, 2020 e 2021, acenderam o alerta dos políticos tomadores de decisão de que algo deveria ser feito. Então, os deputados, atentos a essa questão ambiental, colocaram o Projeto de Lei em discussão novamente e ele já foi aprovado na Câmara dos Deputados. Agora o PL está no Senado para ser discutido com a expectativa de que seja votado e aprovado ainda este ano de 2022.


Além disso, existe uma política pública de Manejo Integrado do Fogo para o Estado de Mato Grosso do Sul, que já traz o conceito de Manejo Integrado do Fogo. “Temos novidades que precisam ser regulamentadas para entrar de fato na ativa, para que essas ações possam ser realizadas e executadas, mas já é um passo bastante importante para que a gente tenha o Manejo Integrado do Fogo implementado não só no Mato Grosso do Sul como no Brasil inteiro”, lembra o analista ambiental Alexandre Pereira. Ele cita que uma das inovações dessa política é a possibilidade de usar o fogo com as queimas prescritas como ferramenta de manejo, diferentemente da queima controlada. A legislação também traz a importância dos brigadistas florestais, contendo artigos específicos que tentam regulamentar ou dar atribuições específicas aos brigadistas. “Isso é bastante importante para valorização dessas pessoas que atuam intensamente na prevenção e combate ao fogo e também dentro do Manejo Integrado do Fogo”, reforça Pereira.


Ciência com tradição indígena


O conhecimento tradicional indígena traz consigo o fogo, uma ferramenta para diversas finalidades. Muito desse conhecimento ficou renegado e desincentivado pelo próprio Governo Federal quando proibiu o uso do fogo de tudo quanto era forma. Esses conhecimentos então começaram a se perder com o tempo porque foram reprimidos, o que acabou desestimulando o repasse entre as pessoas. O Manejo Integrado do Fogo (MIF) traz de volta a necessidade de se usar o fogo, respeitando os aspectos sociais e culturais das comunidades, e tem feito um resgate desse conhecimento. “A gente começa a perceber que essas pessoas, essas populações tradicionais, têm uma interação com o ambiente e uma validação da necessidade dele ter a presença do fogo que estamos começando a compreender agora. E isso eles já entendiam há muito tempo. Conforme a gente consegue entender esse conhecimento e quando a gente traz os conhecimentos técnicos e científicos através do sensoriamente remoto, imagens de satélite, percebemos que, de fato, o que as populações tradicionais faziam desde sempre é o mais adequado para manejar esses combustíveis florestais e evitar a ocorrência de grandes incêndios. Então o conhecimento tradicional, mais especificamente da Terra Indígena Kadiwéu, faz com que a gente tenha uma segurança ainda maior de incentivá-los a usar o fogo novamente para que a gente consiga manejar esse território”, reforça o analista ambiental do Prevfogo/Ibama, Alexandre Pereira.

Mesaque Rocha. Foto: Projeto Noleedi


O artigo publicado no Journal of Applied Ecology, da British Ecological Society, também é assinado por três brigadistas Kadiwéu, que contribuíram com seus conhecimentos tradicionais e também técnicos. Mesaque Rocha, Kadiwéu da Aldeia Alves de Barros, é brigadista nos períodos críticos (julho a dezembro) e desde 2013 é chefe de brigada da Kadiwéu 1. Ele conta que desde antigamente os Kadiwéu já manejavam o fogo. “Eu sempre via o pessoal utilizando a queima no período de agosto, na rebrota do pasto, diminuindo o combustível. O pessoal sempre manejou o fogo para poder caçar, melhorar o pasto para o gado e diminuir as pragas como carrapatos e tantas outras”, lembra Rocha.

Silvio Xavier. Foto: Projeto Noleedi


Silvio Xavier é outro brigadista autor do artigo científico. Ele atua pelo Prevfogo/Ibama desde 2011. Por três anos foi chefe de esquadrão e por um ano foi chefe de brigada. Xavier também aprendeu a manejar o fogo com seus antepassados como seus avós e pais para prevenir que os incêndios florestais atingissem a lavoura da família. “O objetivo do manejo do fogo era a redução da biomassa da vegetação, aqui no Território Indígena Kadiwéu são Cerrados, era diminuir o combustível. O pessoal antigo já fazia isso”, conta Xavier. Desde que se tornou brigadista, Silvio aprendeu a lidar com o Manejo Integrado do Fogo, o MIF. “O resultado é que ele ajuda no período crítico dos incêndios florestais, em agosto e setembro, e já não ocorrem queimadas elevadas. Tem ajudado bastante nos nossos combates dentro da Terra Indígena Kadiwéu”, enfatiza ele. Na opinião do brigadista, o MIF contribui para a produção de mais alimentos para os animais dentro das matas. “Teve uma época em que meus avós saiam para caçar e iam caçar longe. Agora não precisa mais ir longe. Vimos produção de mais frutas, aparecerem mais animais que estão ameaçados de extinção”, afirma Xavier. Para os moradores, as queimas orientadas pelos brigadistas beneficiam toda a Terra Kadiwéu. “Quando aplicamos o Manejo Integrado do Fogo com as queimas prescritas ajudou bastante. Tanto que antes queimava o mangueiro das fazendas e hoje não”, lembra o indígena.

Rubens Aquino Ferraz. Foto: Projeto Noleedi


O terceiro autor indígena, Rubens Aquino Ferraz, brigadista do Prevfogo/Ibama e atualmente vice-presidente da Abink, Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu, testemunha o que o artigo apenas constatou que já acontecia há anos, evidenciando a importância do trabalho dos brigadistas de incêndios. Assim como muitos Kadiwéu, Rubens também aprendeu a manejar o fogo com os antepassados. “Meus avós mexiam com lavoura e numa situação dessas o fogo era tão intenso que vinha para o lado da lavoura deles. Então a gente começou a combater isso sem ter as técnicas mas com todo cuidado. A gente fazia os aceiros, de prevenção. E o fogo até era num tabocal, mais difícil de combater. Depois disso a gente veio a aprimorar as técnicas com o pessoal do Prevfogo”, revela Ferraz. Ele também nos conta por que resolveu ser brigadista de incêndio, numa época em que o Prevfogo/Ibama ainda estava engatinhando em Mato Grosso do Sul. “Sabíamos que tinha uma grande oportunidade pela frente da gente aprender muita coisa. O saudoso doutor Adílio (Adílio Augusto Valadão de Miranda) vinha aqui, a gente conversava muito com ele. Uma das primeiras brigadas quem criou e chefiou foi ele, tanto em Bonito como aqui da Terra Indígena Kadiwéu, que contava com sete brigadistas. Uma frase que me motivou bastante é que ele diz assim, que 'esta terra não é nossa, é dos nossos filhos', foi isso que me motivou bastante. É emprestado, não é nosso, temos que cuidar para devolver bem cuidada para nossos filhos. Eu tenho isso sempre em mente. É a nossa luta para preservar. A gente sempre quando se depara com um incêndio muito grande, a gente cansa, a gente fica exausta mas começamos a lembrar dessa frase, de pessoas que já lutaram bastante e que nos ensinaram muitas coisas também. Hoje eu tenho meus filhos, ensino eles, procuro mostrar para eles, explicar o que estou fazendo”, se emociona Ferraz. O brigadista também esclarece o que é a queima prescrita, que teve sua origem na África e envolve a comunidade. “A gente trabalha com o Prevfogo e a comunidade para fazer umas queimas prescritas bem antes do período crítico, que é agosto e setembro, para que não venha a ter um fogo de grandes proporções, fora de controle, que pode queimar casas, pontes”, revela o brigadista alertando para a necessidade de se diminuir material combustível pois tem partes da Terra Indígena que queimam um ano e outro não, acumulando muito combustível e sem ter a presença de gado para pisotear e comer o pasto. “Então fica muito perigoso no período crítico, por isso que a gente começa a manejar o fogo bem antes, em maio e junho”, reforça Ferraz.


Rubens Ferraz também é parceiro do Projeto Noleedi, nos vídeos e podcasts quem faz a trilha de abertura e encerramento é ele, tocando sua flauta Kadiwéu. Além disso, também auxilia fornecendo informações de seus conhecimentos tradicionais e no diálogo dos pesquisadores com a comunidade local. “Estamos mostrando o que a gente sabe e estamos colhendo o que os pesquisadores nos trazem como os benefícios que o fogo pode trazer para a gente. Tem o fogo ruim e tem o fogo bom também”, conclui.


A liderança maior da Aldeia Alves de Barros, onde existe uma das duas brigadas Kadiwéu, o cacique Ciriaco Ferraz, afirma que o Projeto Noleedi é importante por se tratar de fogo e pelo fato da comunidade ter muitas riquezas para preservar. “Sou cacique no quarto mandato. Estou agradecendo pelo trabalho que sei que é bom para a comunidade”, afirma ele reforçando o pedido de mais projetos para a comunidade como, por exemplo, a instalação de poço artesiano para trazer água de qualidade para os Kadiwéu.


O Projeto Noleedi


O Projeto Noleedi é uma iniciativa da UFMS e do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que está pesquisando os efeitos do fogo no Cerrado e Pantanal. O projeto é executado desde janeiro de 2019 na Terra Indígena Kadiwéu, que possui cerca de 540 mil hectares localizados no norte do município de Porto Murtinho, sudoeste de Mato Grosso do Sul.


Noleedi é a denominação para fogo no idioma Kadiwéu. Ao longo de sua execução, o Projeto pretende gerar dados sobre os efeitos do fogo ocorrendo em diferentes épocas (precoce, modal e tardio) na biota da região; verificar a interação dos diferentes padrões de inundação com os efeitos do fogo sobre alguns grupos-chave da biota local; criar de forma cooperativa e com o envolvimento de agentes do Estado, populações tradicionais e pesquisadores um protocolo de manejo do fogo e também um protocolo de avaliação de impactos de incêndios na biota e avaliar o manejo do fogo como uma estratégia de restauração passiva, além de identificar traços que permitam selecionar espécies com potencial para serem utilizadas na restauração de ecossistemas sujeitos ao fogo, de modo a garantir recursos para a manutenção da fauna e o sucesso no recrutamento de novos indivíduos. Também será conhecido o efeito do fogo sobre a reprodução de espécies da flora utilizadas pela comunidade indígena.


Os incêndios naturais são componentes integrais dos ecossistemas e, tradicionalmente, povos indígenas têm utilizado o fogo para manejo das culturas e para caça. Portanto, existe uma demanda urgente de definição da época e intensidade ideais de prescrição do fogo em locais sob diferentes condições ambientais como, por exemplo, regimes de inundação.


A ação do fogo em áreas de inundação ainda é pouco conhecida. A investigação do manejo prescrito do fogo, proposta pelo Projeto Noleedi, considerando a interação com a inundação, poderá avaliar se há um incremento na ciclagem de nutrientes, na regeneração natural das espécies da flora, e qual o seu efeito na fauna. O manejo adequado do fogo, impedindo com que ele passe a ser um elemento degradador, mas que seja um elemento particular deste ambiente, pode ser considerado como uma estratégia de restauração. 

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