TI Kadiwéu

Vista panorâmica da Serra da Bodoquena. Foto: Fernanda Prado


Conheça os Kadiwéu, “índios cavaleiros” do Pantanal

O “Projeto Noleedi¹ – Efeito do fogo na biota do Pantanal sul-mato-grossense e sua interação com os diferentes regimes de inundação” é uma iniciativa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que está pesquisando os efeitos do fogo no Cerrado e Pantanal. O projeto é executado na Terra Indígena (TI) Kadiwéu. 

Ao longo de 36 meses o projeto pretende gerar dados sobre os efeitos do fogo ocorrendo em diferentes épocas (precoce, modal e tardio) na biota da região; verificar a interação dos diferentes padrões de inundação com os efeitos do fogo sobre alguns grupos-chave da biota local; criar de forma cooperativa e com o envolvimento de agentes do Estado, populações tradicionais e pesquisadores um protocolo de manejo do fogo e também um protocolo de avaliação de impactos de incêndios na biota e avaliar o manejo do fogo como uma estratégia de restauração passiva, além de identificar traços que permitam selecionar espécies com potencial para serem utilizadas na restauração de ecossistemas sujeitos ao fogo, de modo a garantir recursos para a manutenção da fauna e o sucesso no recrutamento de novos indivíduos. Também será conhecido o efeito do fogo sobre a reprodução de espécies da flora utilizadas pela comunidade indígena.

Hoje, conheça um pouco mais sobre os Kadiwéu, conhecidos como "índios cavaleiros", por sua destreza na montaria, que guardam em sua mitologia, na arte e em seus rituais o modo de ser de uma sociedade hierarquizada entre senhores e cativos. Guerreiros, lutaram pelo Brasil na Guerra do Paraguai, razão pela qual, como contam, tiveram suas terras reconhecidas.

A Terra Indígena (TI) Kadiwéu, onde vivem, possui cerca de 540 mil hectares localizados no norte do município de Porto Murtinho, sudoeste de Mato Grosso do Sul. Bodoquena é a cidade mais próxima da aldeia maior (60 km), seguida de Miranda e Aquidauana. Campo Grande (a 310 km) é o centro urbano de maior importância estratégico-administrativa para os Kadiwéu. Ali está sediada a administração da Funai que os jurisdiciona, a associação dos fazendeiros arrendatários (Acrivan – Associação dos Criadores do Vale do Aquidaban e Nabileque) e a Acirk (Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu).

Denominada juridicamente Reserva Indígena Kadiwéu, foi homologada por intermédio do decreto Presidencial n° 89.578, de 24 de abril de 1984. Segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 1.592 (um mil, quinhentos e noventa e dois) indígenas da etnia Kadiwéu no Brasil. Essa população se distribui não equitativamente entre seis aldeias no interior da TI Kadiwéu: Aldeia Alves de Barros, São João, Tomázia, Barro Preto, Campina e Córrego do Ouro. Há ainda índios dessa etnia que vivem em cidades. Por outro lado, há indígenas de outras etnias que estão presentes no interior da TI, como os Kinikinau e Terena.

A Terra Indígena Kadiwéu esteve sujeita a um primeiro reconhecimento oficial no início do século, por ato do Governo do Estado do Mato Grosso. Houve demarcação em 1900 e expedição de decreto em 1903, que já estabelecia como limites naturais os mesmos atuais acima mencionados. Em 9 de abril de 1931, o decreto n° 54 ratificou estes limites. Mas os problemas fundiários foram uma constante em sua história e os Kadiwéu não apagaram de sua memória as tentativas de invasão e conflitos ocorridos desde o início do século. Mais recentemente, a demarcação de suas terras, concluída em 1981, cercou-se de muita tensão com invasores e deixou inclusive de fora de seu perímetro uma aldeia Kadiwéu de nome Xatelôdo, localizada na Serra da Bodoquena. Em 1983 eram em número de 1.868 os posseiros que ocupavam aquela Terra Indígena. Os conflitos gerados, notadamente nos anos de 1982 e 1983, foram amplamente divulgados pela imprensa.

Atividades
Os Kadiwéu são tradicionalmente caçadores e coletores. Contudo, devido à grande habilidade na doma de cavalos aprendida com os espanhóis, o que possibilitou a ocupação de grandes áreas, desenvolveram a pecuária no interior de suas terras, transformando a criação de gado em uma grande atividade econômica e de subsistência da comunidade.

Além dessas atividades, a cerâmica se apresenta como outra fonte de renda para a comunidade e ela ainda é uma representação dos grafismos que identificam a etnia e são produzidas essencialmente pelas mulheres, utilizando-se de pigmentos naturais extraídos de plantas e diferentes cores de argila e silte².

Meio ambiente
De acordo com mapa de biomas do IBGE de 2004, a TI Kadiwéu abrange os biomas Cerrado e Pantanal. Uma grande variedade de fitofisionomias pode ser observada: savanas estépicas (carandazal), arborizadas, florestadas (Chaco), savanas arborizadas e florestadas (Cerrado e Cerradão), floresta estacional decidual e matas de galeria, conforme mapeamento realizado pelo Projeto GEOMS em escala de 1:100.000.

As principais ameaças à integridade da TI são a extração ilegal de madeira e o uso inadequado do fogo, sendo utilizado principalmente para a renovação do pasto nativo na criação de gado.

A sociedade ancestral
Também conhecidos como "índios cavaleiros", integrantes da única "horda" sobrevivente dos Mbayá, um ramo dos Guaikurú, guardam a lembrança de um glorioso passado. Organizados numa sociedade que tinha num extremo os nobres e no outro os cativos, viveram do saque e do tributo sobre seus vizinhos, dos quais faziam depender sua própria reprodução biológica, uma vez que suas mulheres não geravam filhos ou permitiam a sobrevivência de apenas um, quando já estavam no final de seu período fértil. Estas mulheres dedicavam-se à pintura corporal e facial, cuja especial disposição dos elementos geométricos Lévi-Strauss considerou como característica das sociedades hierárquicas. Desenhos que impressionam pela riqueza de suas formas e detalhes, a que temos fácil acesso através da vasta coleção recolhida por Darcy Ribeiro, reproduzida no livro que publicou sobre os Kadiwéu.
Na Guerra do Paraguai, escolheram lutar pelo Brasil e tiveram suas terras reconhecidas. A adoção de um vestuário "country" pelos homens Kadiwéu da atualidade revela seu apego a um modo de vida apoiado no uso e criação de cavalos, de que ainda mantêm rebanhos, embora bem menores que os do passado.

Língua
Os Kadiwéu pertencem à família lingüística Guaikurú, na qual se incluem outros povos do Chaco, que são os Toba (Paraguai e Argentina), os Emók, ou Toba-Mirí (Paraguai), os Mocoví (Argentina), os Abipón (extintos) e os Payaguá (extintos). Dentre estes grupos Guaikurú, os Kadiwéu são os mais setentrionais e o único localizado a leste do rio Paraguai, no Brasil. Alguns velhos, mulheres e sobretudo as crianças falam apenas o Kadiwéu. Um bom número dentre os Kadiwéu, contudo, se comunica com facilidade em português. Há, na língua Kadiwéu, muitas diferenças entre as falas masculina e feminina. É interessante notar que os descendentes de Terena que vivem entre os Kadiwéu usam apenas o português para se comunicar nas aldeias (não usam a língua Terena nem entre si). Entretanto, mesmo que não falem, entendem perfeitamente o Kadiwéu, pois é nesta última língua que são interpelados.

Organização social e política
No passado, as hordas Mbayá se dividiam em "tolderias". A tolderia, onde havia uma casa coletiva, era a menor unidade política e econômica, que reunia a parentela de um "capitão" e os seus cativos. As famílias de "capitães" compunham-se dos Mbayá de nascimento, que hoje são recordados como famílias de Kadiwéu "puros", conforme a elas se referem, ou os goniwtagodepodi ejiwajigi ("nossos senhores Kadiwéu"), sendo ejiwajigi a sua auto-denominação. Goniwtagodi, ou goniwaagodi, conforme as falas masculina e feminina, respectivamente (há distinção linguística entre as duas), é um termo de tratamento que os Kadiwéu usam para qualquer pessoa do sexo masculino, inclusive estrangeiros. As mulheres, da mesma maneira, são interpeladas pelos termos goniwtagodo (na fala masculina) ou goniwaagodo (na fala feminina). Também abordam as crianças por estes termos, que traduzem como senhor e senhora (goniwtagodi = nosso senhor, iniwtagodi = meu senhor).
As decisões políticas e de interesse geral do grupo estão fortemente centralizadas na figura do capitão e seus assessores. O direito de chefia é hereditário. Hoje, tal direito é reconhecido como "naturalmente" pertencente ao bisneto primogênito do Capitãozinho, um venerável líder do passado. Contudo, as regras se flexibilizaram no sentido do sufrágio, no que diz respeito à chefia. Os capitães, termo com que se referem ao chefe ou "cacique", atualmente são escolhidos dentro do grupo e, no transcurso da sua história recente, vários capitães se sucederam em curtos períodos. Estes nem sempre pertencem a "famílias de capitães" e, quando não pertencem, sua posição política não altera seu status social. O capitão é assessorado por um conselho, composto principalmente por homens mais velhos e experientes. Cabe notar, entretanto, que é igualmente forte o papel político de líderes jovens, que alcançaram prestígio sobretudo devido ao seu grau de instrução (alguns deles possuem até o 2° grau escolar) e seu domínio da língua portuguesa, muito útil nas negociações externas.

Arte
Os finos desenhos corporais realizados pelos Kadiwéu constituem-se em uma forma notável da expressão de sua arte. Hábeis desenhistas estampam rostos com desenhos minuciosos e simétricos, traçados com a tinta obtida da mistura de suco de jenipapo com pó de carvão, aplicada com uma fina lasca de madeira ou taquara. No passado, a pintura corporal marcava a diferença entre nobres, guerreiros e cativos.

As mulheres Kadiwéu produzem, igualmente, belas peças de cerâmica: vasos de diversos tamanho e formato, pratos também de diversos tamanhos e profundidade, animais, enfeites de parede, entre outras peças criativas. Decoram-nas com padrões que lhes são distintos, que segue a um repertório rico, mas fixo, de formas preenchidas com variadas cores. A matéria-prima de seu trabalho encontram-na em barreiros especiais, que contêm o barro da consistência e tonalidade ideais para a cerâmica durável. Os pigmentos para sua pintura são conseguidos de areias dos mais variados tons, alguns dos detalhes sendo envernizados com a resina do pau-santo.

Podemos também ver a arte Kadiwéu expressa nos cânticos das mulheres velhas, nas músicas dos tocadores de flauta e tambor, e nas danças coletivas.

A sociedade Kadiwéu atual
Atualmente cada aldeia indígena Kadiwéu está organizada por uma espécie de conselho, tendo o cacique, líder maior, o vice-cacique, e as lideranças, que vêm a ser seus parceiros nas discussões e decisões. No âmbito da Terra Indígena Kadiwéu existe ainda a Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (Acirk) e a Associação das Mulheres Kadiwéu (Amak). Entre os assuntos mais importantes debatidos pelas comunidades está a reintegração de posse dos 150 mil hectares de terras que estão nas mãos dos fazendeiros não-indígenas, situação que está em litígio, o aprimoramento da educação e da saúde indígena, que é muito precária segundo as lideranças. Os Kadiwéu relatam ter de passar ainda por vários tipos de humilhações, principalmente discriminação nos hospitais quando procuram atendimento médico. “Precisamos de mais parcerias, pois somos atendidos fora do nosso município, que é Porto Murtinho, no município de Bodoquena. Não temos muito direito porque não faz parte do nosso município”, relata o vice-cacique, professor e coordenador pedagógico de duas escolas da aldeia Alves de Barros, Gilberto Pires.

O vice-cacique também conta como vivem os Kadiwéu na atualidade:
“Hoje nós vivemos normalmente. Tem pessoas trabalhando fora das aldeias, existe ainda a coleta, a caça, mas isso já não faz mais parte do convívio de hoje. Ainda temos roças, um pouquinho de gado, temos os aposentados, os pensionistas, tem os funcionários de educação, saúde indígena, enfim tem várias modalidades de vida nas nossas comunidades. A educação está boa, mas precisa melhorar um pouco mais, saúde está precária, precisa de uma atenção mais adequada. Eu sempre falo que os Kadiwéu nunca deixaram o seu modo de vida mas também somos obrigados a viver com outras questões, nós somos guerreiros então a gente não pode tremer com qualquer situação. Hoje tem vários garotos que trabalham em outras cidades, nas fábricas, nas cidades, principalmente Campo Grande, Bonito, Bodoquena. A nossa vida é essa, hoje em dia cada um tem seus afazeres, cada um sobrevive da maneira que pode. Também queremos chamar mais projetos para fazer parte da nossa parceria.”

O Projeto Noleedi
O Projeto Noleedi foi submetido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e aprovado na “Chamada CNPq/Prevfogo-Ibama Nº 33/2018 – Pesquisas em ecologia, monitoramento e manejo integrado do fogo”, lançada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Prevfogo/Ibama. Com o edital, o CNPq visa propiciar a atuação conjunta com o Prevfogo/Ibama na consecução de projetos de pesquisa científica, tecnológica e/ou de inovação aplicados que visem preencher as lacunas de conhecimento sobre manejo integrado do fogo, com destaque para ecologia e impactos do fogo, monitoramento, prevenção e combate de incêndios florestais, nos biomas Amazônia, Pantanal e Cerrado, preferencialmente nas áreas em que o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) atua.
Executado pela UFMS e Prevfogo/Ibama, o Projeto Noleedi tem duração de 36 meses e iniciou suas atividades em janeiro de 2019. Conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e parceria de diversas instituições: Semagro (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul), Fertel (Fundação Estadual Jornalista Luiz Chagas de Rádio e TV Educativa de Mato Grosso do Sul), Funai (Fundação Nacional do Índio), Programa Corredor Azul/Wetlands International/Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal), Terra Indígena Kadiwéu e Rede Aguapé de Educação Ambiental do Pantanal.


Glossário
1. Noleedi: (pronuncia-se 'nolêd') significa fogo no idioma Kadiwéu.
2. Silte: fragmentos de rocha ou partículas detríticas menores que um grão de areia, que entram na formação do solo ou de uma rocha sedimentar. Fonte: Dicionário Google.

Fonte
Assessoria de Comunicação do Projeto Noleedi, com informações do site https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kadiw%C3%A9u

Fotos
ISA – Instituto Socioambiental e Projeto Noleedi.


Nenhum comentário:

Postar um comentário