Projeto Noleedi é concluído e revela efeito do fogo no Pantanal e Cerrado

em 17 de agosto de 2023

 
A iniciativa da UFMS e do Prevfogo-Ibama pesquisa desde 2019 efeito do fogo na fauna e flora na Terra Indígena Kadiwéu (Porto Murtinho-MS) e já contribui com políticas públicas do setor. Foto: Brigada Indígena Kadiwéu I


Os incêndios naturais são componentes integrais dos ecossistemas e, tradicionalmente, povos indígenas têm utilizado o fogo para o manejo das culturas e para caça. Portanto, existe uma demanda urgente de definição da época e intensidade ideais de prescrição do fogo em locais sob diferentes condições ambientais como, por exemplo, regimes de inundação.


A ação do fogo em áreas de inundação, como o Pantanal, ainda é pouco conhecida. A investigação do manejo prescrito do fogo, proposta pelo “Projeto Noleedi – Efeito do fogo na biota do Pantanal sul-mato-grossense e sua interação com os diferentes regimes de inundação”, considerando a interação com a inundação, avaliou se há um incremento na ciclagem de nutrientes, na regeneração natural das espécies da flora, e qual o seu efeito na fauna.


O projeto também verificou a interação dos diferentes padrões de inundação com os efeitos do fogo sobre alguns grupos-chave da biota local e divulga agora um protocolo de manejo do fogo e também um protocolo de avaliação de impactos de incêndios na biota.


O Noleedi  avaliou o manejo do fogo, impedindo com que ele passe a ser um elemento degradador, mas que seja um elemento particular deste ambiente, como uma estratégia de restauração passiva, além de ter identificado traços que permitiram selecionar espécies com potencial para serem utilizadas na restauração de ecossistemas sujeitos ao fogo, de modo a garantir recursos para a manutenção da fauna e o sucesso no recrutamento de novos indivíduos. Ainda foi conhecido o efeito do fogo sobre a reprodução de espécies da flora utilizadas pela comunidade indígena.


Desde janeiro de 2019 o Noleedi pesquisou dos efeitos do fogo em diferentes épocas no Cerrado e Pantanal, especificamente na Terra Indígena (TI) Kadiwéu, que possui cerca de 540 mil hectares localizados no norte do município de Porto Murtinho, sudoeste de Mato Grosso do Sul. Atualmente, o projeto, em fase de finalização, divulga os resultados de seus estudos que, reconhecidamente, já estão contribuindo com a formulação de políticas públicas.


Manejo Integrado do Fogo é eficiente no combate aos incêndios


Uma das primeiras constatações do Projeto Noleedi foi sobre o Manejo Integrado do Fogo (MIF) realizado na Terra Indígena Kadiwéu. O manejo de áreas com o uso do fogo por comunidades tradicionais e indígenas vem acontecendo por séculos e este conhecimento é bastante útil para definição de estratégias de gestão. A queimada na época correta, como feita por povos indígenas, gera pouco impacto sobre a fauna e a flora. O uso do fogo por muitas etnias indígenas têm sido relatado como sendo estabelecido criteriosamente em épocas definidas de acordo com períodos de chuva intercalados com curtos períodos de estiagem (Leonel 2000). Ao passo que o abandono desse manejo tem dado espaço a incêndios cada vez mais danosos à vegetação, ao solo e às bacias hidrográficas (Falleiro et al. 2016).


Muitas vezes os restauradores são os povos indígenas que milenarmente utilizam o fogo como uma ferramenta de restauração para fins de recuperação do solo, controle de espécies indesejadas como pestes, manutenção de habitat para os animais silvestres, diminuição de acúmulo de biomassa que leva a incêndios catastróficos e manejo da reprodução das plantas (Uprety et al. 2012).


Imagens mostram a incidência do fogo na TI Kadiwéu antes e depois da atuação das brigadas. Imagem: Projeto Noleedi.

Neste contexto, o programa de Brigadas Federais do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e indígenas na TI Kadiwéu desde 2009 vêm trabalhando em parceria com o intuito de propor um manejo adequado do fogo que reduza a ocorrência de incêndios acidentais. O Projeto Noleedi revelou que desde que o MIF foi implementado na Terra Kadiwéu houve uma redução significativa de 53% dos incêndios da área queimada e uma redução da frequência de incêndios nas áreas florestais, que são áreas normalmente onde se encontram as espécies sensíveis ao fogo.


“É muito importante fazer o manejo do fogo em áreas em restauração porque mesmo que as espécies (da flora) que estejam sendo implantadas ali na área em restauração sejam resistentes ao fogo, nesses estágios iniciais quando elas, as plantas, são ainda muito pequenas, são mais suscetíveis ao fogo. Então se você não fizer o manejo do fogo, um bom aceiro, um bom controle da carga de combustível em volta dessas áreas que estão sendo restauradas, você pode perder o trabalho de muitos anos em um único evento de fogo. Então eu diria que é crucial trabalhar no Cerrado e no Pantanal um plano de restauração ecológica sempre atrelado a um plano de manejo do fogo”, ressalta o coordenador do Projeto Noleedi, o professor doutor Danilo Bandini Ribeiro.


A atuação do Projeto Noleedi conseguiu comprovar através de uma pesquisa científica o que os pesquisadores já desconfiavam: o manejo do fogo realmente é eficiente no combate a incêndios. Os resultados do projeto foram amplamente reconhecidos e se tornaram importantes contribuições em políticas públicas. O Noleedi foi consultado para a elaboração da Lei do Manejo Integrado do Fogo (MIF) do Estado de Mato Grosso do Sul e também para a construção do Estatuto do Pantanal.


Efeito do fogo na flora e fauna do Pantanal e Cerrado


A TI Kadiwéu é influenciada principalmente pelo Pantanal mas também ocorre o Cerrado com influências do bioma pantaneiro. Com relação à fauna e flora do Cerrado e Pantanal, o Projeto Noleedi conseguiu constatar que a interação entre o fogo e inundação é muito importante na distribuição e abundância das espécies,  afetando tanto a quantidade de organismos quanto sua ocorrência numa determinada região.

Figura 1.  Imagens capturadas das armadilhas fotográficas com as espécies mais encontradas: Mazama gouazoubira - veado-catingueiro (A), Tayassu pecari - queixada (B), Pecari tajacu - cateto (C), Tapirus terrestris - anta (D) e Cerdocyon thous - lobinho. E a espécie menos encontrada pela câmera foi a Puma yagouaroundi - gato-mourisco (F). Fonte: Anny de Morais Costa


Em relação à fauna, o Projeto Noleedi constatou que a TI Kadiwéu possui muitas espécies ameaçadas de extinção, ou seja, tem uma fauna bastante rica e além disso uma parte dela é bastante adaptada ao fogo e não não é muito afetada por ele, já outra parte é um pouco mais afetada. Grandes mamíferos, por exemplo, não são afetados pelo regime de fogo, provavelmente pelo fato deles serem bastantes móveis e conseguirem explorar diferentes ambientes e locais com diferentes históricos de queima. O mesmo acontece com as borboletas que, também, por serem bastantes móveis, conseguem se deslocar em áreas com diferentes regimes de fogo, não sendo afetadas pelos incêndios.


O Noleedi também estudou o efeito do fogo nas aranhas. Elas são afetadas tanto pela frequência de incêndio como pela inundação. Quando ocorrem diferentes regimes de fogo tem-se um número diferente de espécies de aranhas. O mesmo pode ser observado nas áreas que estão sob diferentes regimes de inundação, que apresentam um número diferente de espécies e composição de aranhas. Logo, as aranhas que ocorrem nas áreas mais inundadas são diferentes das aranhas que ocorrem nas áreas menos inundadas. As aranhas também são bastantes afetadas pela inundação do Pantanal. Há uma composição diferente de espécies nas áreas que são mais inundadas quando se compara com as áreas menos inundadas.

Ninho em área de estudo do Projeto Noleedi. O regime de fogo afeta a nidificação de várias espécies de aves. Foto: Fernanda Prado


Sobre as aves, o Noleedi descobriu que a composição de espécies é bastante afetada pelo regime de fogo, principalmente porque essas aves utilizam recursos diferentes. Por exemplo, têm aves que fazem os ninhos no chão então depois de um incêndio elas têm mais espaço pra nidificar. Outras aves que se alimentam de animais mortos conseguem ter mais recursos numa área que queimou recentemente. Isso afeta a distribuição delas de acordo com os regimes de fogo na TI Kadiwéu.


No Pantanal, o regime de inundação também influencia na distribuição da flora. Em áreas mais inundadas, como já era de se esperar, há uma densidade menor de árvores e uma cobertura maior de gramíneas e herbáceas. O fogo também afeta a reprodução das espécies da flora. Nos estudos que duraram dois anos, o Noleedi descobriu que entre maio e junho há uma redução muito grande do número de espécies que estão florindo ou frutificando, o que torna esses meses os ideais para se fazer o manejo do fogo porque dessa maneira não serão queimadas as flores e os frutos que são importantes tanto para fauna local como pra pra população que reside na região como, por exemplo, a guavira, o pequi, dentre outras.

Bruno Henrique dos Santos Ferreira em campo para sua pesquisa de doutorado sobre as fases de floração e frutificação de diversas espécies na TI Kadiwéu. Foto: Fernanda Prado

Outro resultado importante revelado pelo Noleedi é que o fogo tem um efeito de retardar a floração e a frutificação da flora. Em áreas que têm um regime de de fogo mais frequente, que queima mais frequentemente, percebe-se que as plantas florescem e frutificam mais tarde no ano.  Isso foi constatado tanto em um histórico e frequência de fogo longo quanto num histórico curto.


Estratégia de comunicação tornou o Noleedi referência


Na comunicação, o Projeto Noleedi teve um êxito bastante grande, contribuindo com a difusão das informações científicas e ajudando a consolidar a iniciativa junto à opinião pública. O Noleedi desenvolveu diversas ações de comunicação utilizando-se de estratégias diretas, virtuais, visuais, radiofônicas e impressas, além de realizar articulações locais. Foram públicos-alvo: a comunidade local da Terra Indígena (TI) Kadiwéu, os governos dos municípios de Porto Murtinho e de Bodoquena, escolas públicas de Porto Murtinho e da cidade de Carmelo Peralta (no Paraguai), rádio emissoras de Campo Grande, Bodoquena, Porto Murtinho, Bonito e Carmelo Peralta, além da imprensa nacional e internacional, proprietários de RPPNs de Mato Grosso do Sul; órgãos públicos ambientais de Mato Grosso do Sul, Funai, pesquisadores da UFMS e educadores ambientais do Pantanal.


Foi elaborado um blog, produzidos 25 podcasts, 22 releases, 14 vídeos, um folder impresso, uma cartilha para escolas da TI Kadiwéu e a edição especial nº 22 da Revista Aguapé, consolidada publicação em Educação Ambiental do Pantanal. Foram criadas página no Facebook e Youtube e dois grupos no Whatsapp. Para divulgar os conteúdos do blog noleedi.blogspot.com foram produzidas 16 edições de uma newsletter, que conta com 560 contatos.


A página da Rede Aguapé de Educação Ambiental do Pantanal no Facebook contribuiu divulgando os conteúdos produzidos. A Ong Mulheres em Ação no Pantanal (Mupan), também divulgou as informações geradas.

Brigadista Indígena, Rubens Aquino Ferraz, concede entrevista durante o evento internacional Wildfire 2019. Foto: Fernanda Prado


O Projeto Noleedi se consolidou como iniciativa científica de estudo do efeito do fogo no Pantanal e Cerrado com apoio dos meios de comunicação. Até o momento foram publicados 36 textos em jornais e/ou revistas, 16 reportagens em TVs e rádios e 105 conteúdos em eventos científicos, lives, webinários, minissérie, mesas, oficina, reunião, audiências públicas, seminários, blogs, redes sociais, vídeos e evento virtual.


O blog Noleedi postou até o momento 88 conteúdos e teve 17.035 visualizações. A página do Facebook conta com 417 seguidores e 395 curtidas. Como se pode perceber, a comunicação tem sido grande aliada na ampla divulgação do projeto.


Participação local


Em sua conclusão o Noleedi conseguiu atingir seus objetivos propostos no projeto inicial. Sua atuação também ocorreu localmente com participação dos indígenas. Algumas das ações tiveram participação direta da comunidade Kadiwéu, que ajudou a escolher espécies-alvo para serem pesquisadas como foi o caso do pau-santo (Bulnesia sarmientoi Lorentz ex Griseb), cuja resina é utilizada nas cerâmicas produzidas pelas mulheres das aldeias. Juntamente com a comunidade escolar, o Noleedi ainda elaborou um material didático sobre fogo no Pantanal que será distribuído para estudantes e professores. “Eu considero que a execução do projeto foi foi bastante satisfatória no que a gente se propôs. Eles (Kadiwéu) reportaram pra gente que isso ajudou eles a despertarem uma consciência ambiental maior nas pessoas por causa do projeto, porque estava se falando disso, comentando sobre meio ambiente, tinham equipes lá, tinha gente sempre trabalhando e também isso influenciou o início de outros projetos na Terra Indígena”, afirma Danilo Bandini Ribeiro.

Cavaleiros Guaicuru, artesanato e pintura corporal típicos kadiwéu. Fotos: Fernanda Prado


O “Projeto Noleedi – Efeito do fogo na biota do Pantanal sul-mato-grossense e sua interação com os diferentes regimes de inundação” é uma iniciativa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Noleedi é a denominação para fogo no idioma indígena Kadiwéu.


O projeto contou com parceria de diversas instituições, entre elas: Semagro (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul), Fertel (Fundação Estadual Jornalista Luiz Chagas de Rádio e TV Educativa de Mato Grosso do Sul), Funai (Fundação Nacional do Índio), Programa Corredor Azul/Wetlands International/Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal), Terra Indígena Kadiwéu, Rede Aguapé de Educação Ambiental do Pantanal, Fundo Brasileiro Para a Biodiversidade (Funbio), Instituto Humanize, eeCoo Sustentabilidade e WWF-Brasil.

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