Artigo da Nature sugere ações para resgatar Pantanal das chamas

em 29 de abril de 2021

Um artigo publicado em dezembro de 2020, no site da revista Nature, uma das mais importantes publicações científicas do mundo, alerta para o resgate do Pantanal em chamas no Brasil. A produção é assinada por cinco pesquisadores, entre eles Renata Libonati, professora doutora adjunta de Climatologia e Sensoriamento Remoto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia (LASA da UFRJ), e Letícia Couto Garcia, professora doutora adjunta especialista em Ecologia de Restauração da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, coordenadora do Laboratório Ecologia da Intervenção (LEI da UFMS), que também integra o Projeto Noleedi. O artigo aborda extremos climáticos, má gestão e leis e políticas públicas pouco efetivas que estão tornando o Pantanal, um Patrimônio Mundial, propenso a incêndios extremos. Os autores sugerem que pesquisadores e governos devem desenvolver um plano para gerenciar esses riscos juntos.

 

Até dezembro de 2020 mais de um terço do Pantanal, a maior área úmida tropical do mundo, ficou em chamas. Quatro milhões de hectares de floresta, vegetação savânica e campestre (uma área equivalente a mais de 26 vezes o tamanho da cidade de São Paulo) pegaram fogo ano passado. Quase todos os territórios indígenas e instalações de conservação foram queimados, assim como muitas terras privadas. Áreas de preservação como o Parque Estadual Encontro das Águas – que continha uma das maiores populações de onças-pintadas do mundo, foram queimadas.

 

Os impactos dos incêndios foram sentidos em todo o país. A fumaça se espalhou por milhares de quilômetros, reduzindo a qualidade do ar em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Os estados do sul experimentaram tempestades com chuva negra. Os incêndios desta proporção estão dizimando a economia do Brasil, pois resultam em restrição do investimento estrangeiro, bem como afeta diretamente setores do turismo, que já são duramente atingidos pela pandemia.

 


Em entrevista ao Projeto Noleedi, a professora Renata Libonati explica por que os incêndios no Pantanal ano passado foram considerados devastadores. “Em 2020 o Pantanal sofreu a maior seca de sua história desde que temos as medições. Ou seja, nos últimos 60 a 70 anos foi o ano em que o Pantanal recebeu menor quantidade de chuva. Além disso, 2020 foi o ano, desde 1980, ou seja, nos últimos 40 anos, em que houve maior risco meteorológico de fogo. O que é o risco meteorológico de fogo? É quanto que a meteorologia daquele tempo, daquele dia, vai contribuir para a propagação do fogo. Altas temperaturas, falta de chuva prolongada, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes tiveram nos seus valores mais extremos dos últimos 40 anos, fazendo com que a propagação do fogo fosse muito fácil. Mas, o fogo não é apenas condicionado pela meteorologia. Ele é condicionado também por outros dois fatores que constituem, junto com o clima e a meteorologia, o 'triângulo do fogo'. Por um lado do triângulo eu tenho a meteorologia que vai contribuir para o avanço do fogo, o outro lado do triângulo é o material combustível que vai pegar fogo, portanto a vegetação, a biomassa acumulada, e a última lateral do triângulo é a ignição. Nesse caso pode ser natural ou de ação humana, porém incêndios naturais que são caracterizados a partir de raios, de descargas atmosféricas, são bastante raros durante a época seca, eles geralmente ocorrem na transição entre a época seca e chuvosa e vice-versa. Então na época seca a causa dos fogos são sempre ações humanas, sejam intencionais ou não. Então o que aconteceu em 2020, na verdade, foi um conjunto de fatores que contribuíram: a maior seca das últimas décadas, o acúmulo de biomassa na região devido à falta de gestão da paisagem, falta de políticas públicas que contribuíssem para essa melhor gestão da paisagem e as ignições, sejam de forma intencional ou não, foram os fatores que contribuíram para essa época de fogo que a gente observou em 2020. Houve a moratória do fogo, a proibição durante 120 dias de colocar fogo, mas que foi ignorada e nós tivemos inúmeras ignições que, conjugadas ao acúmulo de biomassa e às condições meteorológicas adversas levaram a essa catástrofe que nós observamos. O nosso monitoramento indicou que o Pantanal em 2020 teve mais de 30% de sua área afetada pelo fogo. 30% é um valor alto ou baixo? Para responder essa pergunta nós precisamos olhar o histórico, e comparando com o histórico das áreas afetadas pelo fogo dos últimos 20 anos através de monitoramento por satélite nós observamos que a média anual que queima do Pantanal era de aproximadamente 8%. Então 8% do Pantanal queima anualmente e 2020 alcançou mais de 30% de sua área. Realmente 2020 foi um ano sem precedentes em termos de fogo no Pantanal. Um dado mais alarmante é que quase 45% da área que queimou em 2020 nunca havia queimado.”

 

O artigo do site da Nature mostra que o público está preocupado. No entanto, segundo os autores, o governo do Brasil está fazendo pouco, ignorando as causas dos incêndios: uma combinação de gestão inadequada do fogo, extremos climáticos, comportamento humano e regulamentações ambientais pouco efetivas. O pior é que fundos para prevenção de incêndios foram cortados e houve demora na contratação de bombeiros. Os recursos para proteção ambiental e ações climáticas foram reduzidos, principalmente nos últimos dois anos. O orçamento de 630 milhões de dólares do Ministério do Meio Ambiente foi cortado em cerca de 20% em 2020 e deve cair mais 35% em 2021.

 

No campo científico, os riscos e impactos de incêndios na região ainda são pouco estudados. É necessária uma pesquisa mais profunda sobre as condições climáticas bem como sobre as influências da ecologia e do manejo. Os cientistas precisam saber como os vários fatores por trás de grandes incêndios interagem, incluindo o estresse da vegetação, condições climáticas extremas e atividades humanas. E mais estudos são necessários para informar as estratégias de manejo do fogo na região.

 

A temporada de incêndios de 2020 no Pantanal é excepcional e as condições que levaram a esses incêndios estão se tornando cada vez mais comuns à medida que a área esquenta. Pesquisadores e governos precisam se unir para desenvolver uma estratégia abrangente de prevenção e gerenciamento de incêndios. Caso contrário, e com incêndios recorrentes, esta grande zona úmida tropical poderá ter dificuldades para se recuperar.

 


Uma das autoras do artigo, a professora Letícia Garcia, também foi entrevistada pelo Projeto Noleedi e fala por que a ciência, as pesquisas científicas, abordagens políticas, socioeconômicas precisam mudar e serem mais profundas para informar as melhores estratégias de manejo do fogo para a região. "Primeiramente os governantes têm que reconhecer que as causas dos incêndios são uma combinação tanto da gestão inadequada do fogo quanto dos fatores climáticos extremos, comportamento humano, falta de fiscalização e punição também. O governo ano passado cortou grande parte do financiamento para prevenção dos incêndios. Em 2020, o processo de contratação dos bombeiros também atrasou. E o negacionismo da ciência e da efetividade dos satélites também foram questionados. Isso atrapalha o reconhecimento do avanço a respeito do tema. Em relação às pesquisas, há necessidade de se avançar tanto com as informações quanto com os riscos de incêndios, condições meteorológicas que propiciam nesta região o início dos incêndios e também informações sobre quais os fatores externos que vão condicionar os incêndios. Por exemplo, a combinação entre essas condições do clima, das atividades humanas, da vegetação. Em termos da gestão pouco se sabe sobre os efeitos das estratégias de Manejo Integrado do Fogo (o chamado MIF) nessa região. E com o aquecimento global a tendência de ocorrer eventos extremos como o de 2020 vai ser cada vez mais provável. Então isso é uma pauta que tem que ser colocada sim, com urgência. Há necessidade do avanço nessas pautas e necessidade urgente do diálogo entre governos, pesquisadores e gestores visando a prevenção dos incêndios e o Manejo Integrado do Fogo (MIF)."

 

Com mais de 84% de seu território conservado, o Pantanal é a maior área úmida tropical remanescente de vegetação natural do mundo. É um Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Ali vivem comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Os fazendeiros tradicionais praticam formas únicas de agricultura sustentável, incluindo gado em pastagens nativas que se movem para terras mais altas quando as planícies inundam. Os turistas migram para a região por suas paisagens espetaculares, safáris e pesca esportiva.

 

Os incêndios afetaram todos os aspectos da vida. A Covid-19 piorou as coisas. O Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Ibama, tem lutado para contratar e treinar bombeiros. Muitos incêndios surgiram em regiões remotas, de difícil acesso. Os brigadistas da Terra Indígena Kadiwéu, por exemplo, lutaram quase sozinhos para conter as chamas excepcionalmente fortes.

 

A perda total com os incêndios da região levará meses para ser calculada no Pantanal e os impactos são duradouros. O carvão e as cinzas contaminam os rios e promovem bactérias nocivas que envenenam os suprimentos de água potável e matam peixes. Solos erodidos são descarregados a jusante. As plantas sensíveis ao fogo lutam para produzir sementes. Vastas extensões de terra precisarão ser avaliadas para entender se podem ser restauradas. As comunidades terão que ser reconstruídas.

 

Mas o que está por trás desses incêndios? O artigo lembra que o Pantanal é adaptado às queimadas, embora seja uma zona úmida. Durante a metade do ano, é seco e com tendência a pegar fogo. Às vezes, um raio causa a faísca. Mais frequentemente, está relacionado com o homem – descargas de cabos elétricos, queima de lixo e madeira de cercas de gado, uso de fogo para evitar ataques de abelhas ao coletar mel e até mesmo acidentes de carro e maquinaria agrícola danificada. Alguns pecuaristas queimam a paisagem para remover arbustos e estimular o crescimento de gramíneas nativas, que são adaptadas ao fogo e brotam após a poda ou queima. Esses incêndios regularmente ficam fora de controle, especialmente em áreas onde não há um sistema para gerenciá-los.

 

Os autores também alertam que a frequência e a gravidade dos focos de incêndio estão piorando à medida que o clima esquenta e os impactos humanos aumentam. Desde 1980, as temperaturas médias aumentaram 2° Celsius e a umidade caiu 25%, de acordo com o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo. Em 2020 foi registrada a pior seca  no Pantanal em 60 anos, induzida por águas excepcionalmente quentes no Atlântico Norte. A estação chuvosa teve 57% menos chuva do que o normal. Em junho do ano passado, o rio Paraguai estava na metade de seu nível normal. Esta combinação de condições quentes e secas empurrou os limites de inflamabilidade para o seu mais alto nível desde 1980. Esses limites indicam a dificuldade de controlar incêndios.

 

Na opinião dos autores do artigo da Nature os pesquisadores precisam reforçar as evidências para apoiar uma nova abordagem. Até agora, a maioria dos estudos no Pantanal tem se concentrado em uma única área de estudo, a ecologia vegetal, por exemplo. A pesquisa sobre outros tópicos, como clima, ainda carece de informações. Existem poucos estudos sobre as causas humanas e as respostas aos incêndios no Pantanal para informar as estratégias de manejo do fogo. Falta uma compreensão completa dos ciclos de queima e tendências de longo prazo. A ciência do fogo é multidisciplinar, abrangendo campos que vão do clima à química, da ecologia à economia, bem como análise de risco e modelagem computacional. É necessária uma força-tarefa que reúna pesquisadores de todas essas áreas, além de técnicos que atuam na área.

 

Negligenciar as conexões entre clima, uso da terra e manejo do fogo tornará desafiador restaurar o Pantanal ao seu antigo estado, bem como proteger a região no futuro. Qualquer mudança no padrão natural de queima interrompe os ecossistemas e as cadeias alimentares, às vezes completamente. Por exemplo, as onças terão dificuldade para encontrar herbívoros para comer, se estes forem mortos pelas chamas ou não conseguirem encontrar frutos e folhas em uma paisagem queimada. Gerações de árvores sensíveis ao fogo podem ser perdidas, por exemplo de algumas espécies de matas ciliares como a Genipa americana, conhecida popularmente como jenipapo, cujos frutos são básicos para a fauna e usados pelos indígenas para fazer tinta preta para pinturas corporais. Os impactos se propagam rapidamente. Incêndios florestais repetidos reduzem a resiliência das comunidades e da vegetação; as florestas são substituídas por paisagens abertas com menos recursos, espécies sensíveis ao fogo podem desaparecer caso o fogo ocorra de forma recorrente.

 

Ainda segundo a publicação da Nature, o Brasil deve agir contra o desmatamento e os incêndios florestais para proteger sua economia. O governo deve desenvolver uma estratégia de longo prazo para mitigar os danos dos incêndios florestais no Pantanal que leve todos os fatores em consideração, incluindo o manejo eficaz do fogo e políticas de proteção ambiental. Por outro lado, os pesquisadores precisam fortalecer o conhecimento sobre o regime de fogo para informar esta estratégia. O financiamento deve ser direcionado para a gestão de incêndios e proteção ambiental, bem como para a aplicação da lei e cobrança de multas por fiscais ambientais. Programas de educação e informação nas escolas ou na mídia conscientizariam a população sobre as consequências do comportamento irresponsável.

 

Em entrevista ao Projeto Noleedi, a professora Letícia Garcia cita exemplos de como esse processo pode acontecer: "Por exemplo, integrando diferentes áreas de pesquisa como a meteorologia, a ecologia do fogo, informando através de publicações científicas que sejam amplamente divulgadas com definições de prioridades de intervenção tanto no espaço, mapeando essas áreas, quanto no tempo, com o período em que existe uma combinação de fatores climáticos que propiciariam grandes incêndios, caso exista material de combustão, ou seja, biomassa vegetal, e ignição, ou seja, ação humana para desencadear o incêndio. Esse tipo de informação que as pesquisas podem fornecer são muito importantes para auxiliar os governos."

 

Integrante do Projeto Noleedi, que estuda o efeito do fogo na Terra Indígena Kadiwéu, no Pantanal, a professora Letícia lembra que esta pesquisa pode contribuir com a gestão do fogo e as políticas públicas. “Esse Projeto Noleedi tem a grande oportunidade de registrar cientificamente os feitos da prática do Manejo Integrado do Fogo (MIF) realizado pelos brigadistas Kadiwéu em parceria com o Prevfogo do Ibama sobre a biodiversidade e sobre o regime histórico do fogo na região, ou seja, com esse projeto nós podemos demonstrar tanto os efeitos diretos do que acontece no campo com as plantas e com os animais, como também na escala da paisagem, demonstrando, por exemplo, que o MIF diminui o tamanho da área queimada e a frequência dos eventos de incêndio após a implantação desse manejo ter ocorrido no território. E quando produzimos dados com base científica excluímos as opiniões e apresentamos os fatos, o que é essencial para a tomada de decisão na esfera da gestão do fogo e das políticas públicas."

 

O LASA, Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de Meteorologia da UFRJ foi um dos grandes aliados no monitoramento das queimadas no Pantanal em 2020. A coordenadora do LASA, Renata Libonati, em entrevista ao Projeto Noleedi, explicou como é feito esse trabalho. "O LASA vem desenvolvendo produtos derivados de satélites há bastante tempo, principalmente com o sentido de monitorar as queimadas e incêndios florestais no Brasil, e durante nossas pesquisas identificamos uma lacuna no país que era a informação de alertas de área queimada. Até então nós tínhamos o alerta de desmatamento, de foco de calor, onde estava ocorrendo o incêndio, porém nós não tínhamos o alerta do quanto estava queimando, da área que estava sendo queimada, localização e extensão do fenômeno. Então nós desenvolvemos, em conjunto com pesquisadores da Universidade de Lisboa, um algoritmo para identificar e fornecer alertas em tempo quase real do avanço da frente de fogo e fizemos um protótipo para o Pantanal em 2020. Os resultados foram bastante úteis não só para a gestão dos incêndios, quer dizer que quem estava em combate sabia onde colocar seu contingente humano, pessoas para combater o fogo, sabia onde já queimou, mas também serviu para estudos de perícia para saber onde começou o incêndio e onde terminou. Nós ajudamos também pesquisadores com essas informações, para eles avaliarem impactos, por exemplo, e também nossos dados foram muito úteis para a mídia disseminar a catástrofe, enfim, informar a população sobre o que estava acontecendo. O monitoramento é feito através do uso de satélites provenientes da NASA. Nós recebemos a informação, processamos num modelo de inteligência artificial e esse modelo nos diz exatamente a cada dia quais são as regiões que estão pegando fogo, fornecendo um mapa da localização, extensão e data da ocorrência de cada cicatriz do fogo."

 

A parceria entre o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA da UFRJ) e o Laboratório Ecologia da Intervenção (LEI da UFMS) não aconteceu apenas para o artigo da Nature. Ocorre desde 2020 para as pesquisas sobre incêndios no Pantanal. A professora Renata Libonati ressalta: “Pesquisa a gente nunca faz sozinha, ciência precisa de colaboração então foi por isso que nós nos associamos a pesquisadores locais, conhecedores do Pantanal, com uma experiência em conhecimento da região, que era necessária para continuidade do nosso trabalho, então nos associamos ao LEI (Laboratório Ecologia da Intervenção) da UFMS e espero que seja uma colaboração longa porque, com certeza, vai ser profícua e nós temos muito a aprender e a crescer juntos.” Essa colaboração permitiu a elaboração não só de artigos científicos, mas também de divulgação para um público especial, as crianças que querem entender mais do assunto, veja na revista Ciência Hoje das Crianças: http://chc.org.br/artigo/queimadas-incendios-e-fogo/

 

Enfim, o artigo publicado no site da Nature finaliza afirmando que um mundo em aquecimento e em rápida mudança exige uma nova abordagem proativa para combater os incêndios florestais. Para acessar a publicação completa clique no link a seguir:

https://www.nature.com/articles/d41586-020-03464-1

O artigo publicado na revista Nature também virou tema do Podcast Informe Noleedi. Ouça na versão estendida ou compacta:

 

Podcast 15: Artigo da Nature sugere ações para resgatarpantanal das chamas – versão estendida – 28’01”

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