Até
dezembro de 2020 mais de um terço do Pantanal, a maior área úmida tropical do
mundo, ficou em chamas. Quatro milhões de hectares de floresta, vegetação
savânica e campestre (uma área equivalente a mais de 26 vezes o tamanho da
cidade de São Paulo) pegaram fogo ano passado. Quase todos os territórios
indígenas e instalações de conservação foram queimados, assim como muitas
terras privadas. Áreas de preservação como o Parque Estadual Encontro das Águas
– que continha uma das maiores populações de onças-pintadas do mundo, foram
queimadas.
Os
impactos dos incêndios foram sentidos em todo o país. A fumaça se espalhou por
milhares de quilômetros, reduzindo a qualidade do ar em São Paulo, Rio de
Janeiro e Curitiba. Os estados do sul experimentaram tempestades com chuva
negra. Os incêndios desta proporção estão dizimando a economia do Brasil, pois
resultam em restrição do investimento estrangeiro, bem como afeta diretamente
setores do turismo, que já são duramente atingidos pela pandemia.
Em
entrevista ao Projeto Noleedi, a professora Renata Libonati explica por
que os incêndios no Pantanal ano passado foram considerados devastadores. “Em
2020 o Pantanal sofreu a maior seca de sua história desde que temos as medições.
Ou seja, nos últimos 60 a 70 anos foi o ano em que o Pantanal recebeu menor
quantidade de chuva. Além disso, 2020 foi o ano, desde 1980, ou seja, nos
últimos 40 anos, em que houve maior risco meteorológico de fogo. O que é o
risco meteorológico de fogo? É quanto que a meteorologia daquele tempo, daquele
dia, vai contribuir para a propagação do fogo. Altas temperaturas, falta de
chuva prolongada, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes tiveram nos seus
valores mais extremos dos últimos 40 anos, fazendo com que a propagação do fogo
fosse muito fácil. Mas, o fogo não é apenas condicionado pela meteorologia. Ele
é condicionado também por outros dois fatores que constituem, junto com o clima
e a meteorologia, o 'triângulo do fogo'. Por um lado do triângulo eu tenho a
meteorologia que vai contribuir para o avanço do fogo, o outro lado do
triângulo é o material combustível que vai pegar fogo, portanto a vegetação, a
biomassa acumulada, e a última lateral do triângulo é a ignição. Nesse caso
pode ser natural ou de ação humana, porém incêndios naturais que são
caracterizados a partir de raios, de descargas atmosféricas, são bastante raros
durante a época seca, eles geralmente ocorrem na transição entre a época seca e
chuvosa e vice-versa. Então na época seca a causa dos fogos são sempre ações
humanas, sejam intencionais ou não. Então o que aconteceu em 2020, na verdade,
foi um conjunto de fatores que contribuíram: a maior seca das últimas décadas,
o acúmulo de biomassa na região devido à falta de gestão da paisagem, falta de
políticas públicas que contribuíssem para essa melhor gestão da paisagem e as
ignições, sejam de forma intencional ou não, foram os fatores que contribuíram
para essa época de fogo que a gente observou em 2020. Houve a moratória do fogo,
a proibição durante 120 dias de colocar fogo, mas que foi ignorada e nós
tivemos inúmeras ignições que, conjugadas ao acúmulo de biomassa e às condições
meteorológicas adversas levaram a essa catástrofe que nós observamos. O nosso
monitoramento indicou que o Pantanal em 2020 teve mais de 30% de sua área
afetada pelo fogo. 30% é um valor alto ou baixo? Para responder essa pergunta
nós precisamos olhar o histórico, e comparando com o histórico das áreas
afetadas pelo fogo dos últimos 20 anos através de monitoramento por satélite
nós observamos que a média anual que queima do Pantanal era de aproximadamente
8%. Então 8% do Pantanal queima anualmente e 2020 alcançou mais de 30% de sua
área. Realmente 2020 foi um ano sem precedentes em termos de fogo no Pantanal.
Um dado mais alarmante é que quase 45% da área que queimou em 2020 nunca havia
queimado.”
O
artigo do site da Nature mostra que o público está preocupado. No entanto,
segundo os autores, o governo do Brasil está fazendo pouco, ignorando as causas
dos incêndios: uma combinação de gestão inadequada do fogo, extremos
climáticos, comportamento humano e regulamentações ambientais pouco efetivas. O
pior é que fundos para prevenção de incêndios foram cortados e houve demora na
contratação de bombeiros. Os recursos para proteção ambiental e ações
climáticas foram reduzidos, principalmente nos últimos dois anos. O orçamento
de 630 milhões de dólares do Ministério do Meio Ambiente foi cortado em cerca
de 20% em 2020 e deve cair mais 35% em 2021.
No
campo científico, os riscos e impactos de incêndios na região ainda são pouco
estudados. É necessária uma pesquisa mais profunda sobre as condições
climáticas bem como sobre as influências da ecologia e do manejo. Os cientistas
precisam saber como os vários fatores por trás de grandes incêndios interagem,
incluindo o estresse da vegetação, condições climáticas extremas e atividades
humanas. E mais estudos são necessários para informar as estratégias de manejo
do fogo na região.
A
temporada de incêndios de 2020 no Pantanal é excepcional e as condições que
levaram a esses incêndios estão se tornando cada vez mais comuns à medida que a
área esquenta. Pesquisadores e governos precisam se unir para desenvolver uma
estratégia abrangente de prevenção e gerenciamento de incêndios. Caso
contrário, e com incêndios recorrentes, esta grande zona úmida tropical poderá
ter dificuldades para se recuperar.
Uma
das autoras do artigo, a professora Letícia Garcia, também foi entrevistada
pelo Projeto Noleedi e fala por que a ciência, as pesquisas científicas,
abordagens políticas, socioeconômicas precisam mudar e serem mais profundas
para informar as melhores estratégias de manejo do fogo para a região.
"Primeiramente os governantes têm que reconhecer que as causas dos
incêndios são uma combinação tanto da gestão inadequada do fogo quanto dos
fatores climáticos extremos, comportamento humano, falta de fiscalização e
punição também. O governo ano passado cortou grande parte do financiamento para
prevenção dos incêndios. Em 2020, o processo de contratação dos bombeiros
também atrasou. E o negacionismo da ciência e da efetividade dos satélites
também foram questionados. Isso atrapalha o reconhecimento do avanço a respeito
do tema. Em relação às pesquisas, há necessidade de se avançar tanto com as
informações quanto com os riscos de incêndios, condições meteorológicas que
propiciam nesta região o início dos incêndios e também informações sobre quais
os fatores externos que vão condicionar os incêndios. Por exemplo, a combinação
entre essas condições do clima, das atividades humanas, da vegetação. Em termos
da gestão pouco se sabe sobre os efeitos das estratégias de Manejo Integrado do
Fogo (o chamado MIF) nessa região. E com o aquecimento global a tendência de
ocorrer eventos extremos como o de 2020 vai ser cada vez mais provável. Então
isso é uma pauta que tem que ser colocada sim, com urgência. Há necessidade do
avanço nessas pautas e necessidade urgente do diálogo entre governos,
pesquisadores e gestores visando a prevenção dos incêndios e o Manejo Integrado
do Fogo (MIF)."
Com
mais de 84% de seu território conservado, o Pantanal é a maior área úmida
tropical remanescente de vegetação natural do mundo. É um Patrimônio Mundial da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Ali vivem comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Os fazendeiros
tradicionais praticam formas únicas de agricultura sustentável, incluindo gado
em pastagens nativas que se movem para terras mais altas quando as planícies
inundam. Os turistas migram para a região por suas paisagens espetaculares,
safáris e pesca esportiva.
Os
incêndios afetaram todos os aspectos da vida. A Covid-19 piorou as coisas. O
Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do
Ibama, tem lutado para contratar e treinar bombeiros. Muitos incêndios surgiram
em regiões remotas, de difícil acesso. Os brigadistas da Terra Indígena
Kadiwéu, por exemplo, lutaram quase sozinhos para conter as chamas
excepcionalmente fortes.
A
perda total com os incêndios da região levará meses para ser calculada no
Pantanal e os impactos são duradouros. O carvão e as cinzas contaminam os rios
e promovem bactérias nocivas que envenenam os suprimentos de água potável e
matam peixes. Solos erodidos são descarregados a jusante. As plantas sensíveis
ao fogo lutam para produzir sementes. Vastas extensões de terra precisarão ser
avaliadas para entender se podem ser restauradas. As comunidades terão que ser
reconstruídas.
Mas
o que está por trás desses incêndios? O artigo lembra que o Pantanal é adaptado
às queimadas, embora seja uma zona úmida. Durante a metade do ano, é seco e com
tendência a pegar fogo. Às vezes, um raio causa a faísca. Mais frequentemente,
está relacionado com o homem – descargas de cabos elétricos, queima de lixo e
madeira de cercas de gado, uso de fogo para evitar ataques de abelhas ao
coletar mel e até mesmo acidentes de carro e maquinaria agrícola danificada.
Alguns pecuaristas queimam a paisagem para remover arbustos e estimular o
crescimento de gramíneas nativas, que são adaptadas ao fogo e brotam após a
poda ou queima. Esses incêndios regularmente ficam fora de controle,
especialmente em áreas onde não há um sistema para gerenciá-los.
Os
autores também alertam que a frequência e a gravidade dos focos de incêndio
estão piorando à medida que o clima esquenta e os impactos humanos aumentam.
Desde 1980, as temperaturas médias aumentaram 2° Celsius e a umidade caiu 25%,
de acordo com o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo. Em 2020
foi registrada a pior seca no Pantanal
em 60 anos, induzida por águas excepcionalmente quentes no Atlântico Norte. A
estação chuvosa teve 57% menos chuva do que o normal. Em junho do ano passado,
o rio Paraguai estava na metade de seu nível normal. Esta combinação de
condições quentes e secas empurrou os limites de inflamabilidade para o seu
mais alto nível desde 1980. Esses limites indicam a dificuldade de controlar
incêndios.
Na
opinião dos autores do artigo da Nature os pesquisadores precisam reforçar as
evidências para apoiar uma nova abordagem. Até agora, a maioria dos estudos no
Pantanal tem se concentrado em uma única área de estudo, a ecologia vegetal,
por exemplo. A pesquisa sobre outros tópicos, como clima, ainda carece de
informações. Existem poucos estudos sobre as causas humanas e as respostas aos
incêndios no Pantanal para informar as estratégias de manejo do fogo. Falta uma
compreensão completa dos ciclos de queima e tendências de longo prazo. A
ciência do fogo é multidisciplinar, abrangendo campos que vão do clima à
química, da ecologia à economia, bem como análise de risco e modelagem
computacional. É necessária uma força-tarefa que reúna pesquisadores de todas
essas áreas, além de técnicos que atuam na área.
Negligenciar
as conexões entre clima, uso da terra e manejo do fogo tornará desafiador
restaurar o Pantanal ao seu antigo estado, bem como proteger a região no
futuro. Qualquer mudança no padrão natural de queima interrompe os ecossistemas
e as cadeias alimentares, às vezes completamente. Por exemplo, as onças terão
dificuldade para encontrar herbívoros para comer, se estes forem mortos pelas
chamas ou não conseguirem encontrar frutos e folhas em uma paisagem queimada.
Gerações de árvores sensíveis ao fogo podem ser perdidas, por exemplo de
algumas espécies de matas ciliares como a Genipa americana, conhecida
popularmente como jenipapo, cujos frutos são básicos para a fauna e usados
pelos indígenas para fazer tinta preta para pinturas corporais. Os impactos se
propagam rapidamente. Incêndios florestais repetidos reduzem a resiliência das
comunidades e da vegetação; as florestas são substituídas por paisagens abertas
com menos recursos, espécies sensíveis ao fogo podem desaparecer caso o fogo
ocorra de forma recorrente.
Ainda
segundo a publicação da Nature, o Brasil deve agir contra o desmatamento e os
incêndios florestais para proteger sua economia. O governo deve desenvolver uma
estratégia de longo prazo para mitigar os danos dos incêndios florestais no
Pantanal que leve todos os fatores em consideração, incluindo o manejo eficaz
do fogo e políticas de proteção ambiental. Por outro lado, os pesquisadores
precisam fortalecer o conhecimento sobre o regime de fogo para informar esta
estratégia. O financiamento deve ser direcionado para a gestão de incêndios e
proteção ambiental, bem como para a aplicação da lei e cobrança de multas por
fiscais ambientais. Programas de educação e informação nas escolas ou na mídia
conscientizariam a população sobre as consequências do comportamento irresponsável.
Em
entrevista ao Projeto Noleedi, a professora Letícia Garcia cita exemplos
de como esse processo pode acontecer: "Por exemplo, integrando diferentes
áreas de pesquisa como a meteorologia, a ecologia do fogo, informando através
de publicações científicas que sejam amplamente divulgadas com definições de
prioridades de intervenção tanto no espaço, mapeando essas áreas, quanto no
tempo, com o período em que existe uma combinação de fatores climáticos que
propiciariam grandes incêndios, caso exista material de combustão, ou seja,
biomassa vegetal, e ignição, ou seja, ação humana para desencadear o incêndio.
Esse tipo de informação que as pesquisas podem fornecer são muito importantes
para auxiliar os governos."
Integrante
do Projeto Noleedi, que estuda o efeito do fogo na Terra Indígena
Kadiwéu, no Pantanal, a professora Letícia lembra que esta pesquisa pode
contribuir com a gestão do fogo e as políticas públicas. “Esse Projeto Noleedi
tem a grande oportunidade de registrar cientificamente os feitos da prática do
Manejo Integrado do Fogo (MIF) realizado pelos brigadistas Kadiwéu em parceria
com o Prevfogo do Ibama sobre a biodiversidade e sobre o regime histórico do
fogo na região, ou seja, com esse projeto nós podemos demonstrar tanto os
efeitos diretos do que acontece no campo com as plantas e com os animais, como
também na escala da paisagem, demonstrando, por exemplo, que o MIF diminui o
tamanho da área queimada e a frequência dos eventos de incêndio após a
implantação desse manejo ter ocorrido no território. E quando produzimos dados
com base científica excluímos as opiniões e apresentamos os fatos, o que é
essencial para a tomada de decisão na esfera da gestão do fogo e das políticas
públicas."
O
LASA, Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Departamento de
Meteorologia da UFRJ foi um dos grandes aliados no monitoramento das queimadas
no Pantanal em 2020. A coordenadora do LASA, Renata Libonati, em entrevista ao
Projeto Noleedi, explicou como é feito esse trabalho. "O LASA vem
desenvolvendo produtos derivados de satélites há bastante tempo, principalmente
com o sentido de monitorar as queimadas e incêndios florestais no Brasil, e
durante nossas pesquisas identificamos uma lacuna no país que era a informação
de alertas de área queimada. Até então nós tínhamos o alerta de desmatamento,
de foco de calor, onde estava ocorrendo o incêndio, porém nós não tínhamos o
alerta do quanto estava queimando, da área que estava sendo queimada,
localização e extensão do fenômeno. Então nós desenvolvemos, em conjunto com
pesquisadores da Universidade de Lisboa, um algoritmo para identificar e
fornecer alertas em tempo quase real do avanço da frente de fogo e fizemos um
protótipo para o Pantanal em 2020. Os resultados foram bastante úteis não só
para a gestão dos incêndios, quer dizer que quem estava em combate sabia onde
colocar seu contingente humano, pessoas para combater o fogo, sabia onde já
queimou, mas também serviu para estudos de perícia para saber onde começou o
incêndio e onde terminou. Nós ajudamos também pesquisadores com essas
informações, para eles avaliarem impactos, por exemplo, e também nossos dados
foram muito úteis para a mídia disseminar a catástrofe, enfim, informar a
população sobre o que estava acontecendo. O monitoramento é feito através do
uso de satélites provenientes da NASA. Nós recebemos a informação, processamos
num modelo de inteligência artificial e esse modelo nos diz exatamente a cada
dia quais são as regiões que estão pegando fogo, fornecendo um mapa da
localização, extensão e data da ocorrência de cada cicatriz do fogo."
A
parceria entre o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA da
UFRJ) e o Laboratório Ecologia da Intervenção (LEI da UFMS) não aconteceu
apenas para o artigo da Nature. Ocorre desde 2020 para as pesquisas sobre
incêndios no Pantanal. A professora Renata Libonati ressalta: “Pesquisa a gente
nunca faz sozinha, ciência precisa de colaboração então foi por isso que nós
nos associamos a pesquisadores locais, conhecedores do Pantanal, com uma
experiência em conhecimento da região, que era necessária para continuidade do
nosso trabalho, então nos associamos ao LEI (Laboratório Ecologia da
Intervenção) da UFMS e espero que seja uma colaboração longa porque, com
certeza, vai ser profícua e nós temos muito a aprender e a crescer juntos.”
Essa colaboração permitiu a elaboração não só de artigos científicos, mas
também de divulgação para um público especial, as crianças que querem entender
mais do assunto, veja na revista Ciência Hoje das Crianças: http://chc.org.br/artigo/queimadas-incendios-e-fogo/
Enfim,
o artigo publicado no site da Nature finaliza afirmando que um mundo em
aquecimento e em rápida mudança exige uma nova abordagem proativa para combater
os incêndios florestais. Para acessar a publicação completa clique no link a
seguir:
O
artigo publicado na revista Nature também virou tema do Podcast Informe
Noleedi. Ouça na versão estendida ou compacta:
Podcast 15: Artigo da Nature sugere ações para resgatarpantanal das chamas – versão estendida – 28’01”
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